sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Taiuô e Kéindê


Há muitos e muitos e muitos anos, num tempo em que o mundo era ainda mais bonito que hoje, nasceu num vilarejo do outro lado do oceano, no grande continente da África, um casal de gêmeos. Gêmeos são aqueles irmãozinhos especiais que passam um tempo juntos dentro na barriga da mãe. E como acontecia com todos os gêmeos que nasciam naquele povoado, eles receberam os nomes de Taiuô e Kéindê.

Essa era ocasião pra muita festa, pois o povo daquele lugar sabia que o nascimento de gêmeos era sinal de sorte e felicidade. No dia da chegada de Taiuô e Kéindê, todos os habitantes, desde os já bem velhinhos até as crianças bem pequenas (curiosas que estavam para ver os dois novos bebês) foram à casa dos gêmeos levar presentes para a família. As mulheres levavam inhame e os homens levavam vinho de palmeira. Cada criança levava também seu presentinho, bonecos e bichinhos feitos de pau, folha, cascas de fruta e sementes. A família dos músicos foi a primeira a chegar, com seus tambores-falantes, dunduns e agogôs. Os tambores repicaram alegres, e as pessoas cantavam:

Ter gêmeos é uma dança
Ter gêmeos é uma festa
Também quero gêmeos na minha família
Cadê o meu Taiuô?
Cadê o meu Taiuô?
Êpa criança que vem ver o mundo!
Para a sua Kéindê
Êpa a sua Kéindê!

Aquela gente conhecia o maravilhoso segredo dos gêmeos: ao contrário do que a gente aprende, a criança que nasce primeiro é que é a caçula! Ela é enviada ao mundo pelo irmãozinho mais velho, que aguarda na barriga da mãe, cheio de ansiedade, as notícias da vida lá fora.

O Taiuô da nossa história nasceu menino: curioso, enxerido, bisbilhotando o mundo das pessoas, dos bichos, das plantas e das coisas para contar pra sua irmã mais velha, a bela Kéindê, que nasceu logo depois. Só depois de Taiuô dizer que o mundo era mesmo muito bonito (e naquele tempo o mundo era ainda mais bonito que hoje) é que Kéindê foi saindo bem devagarzinho da barriga da mãe, cautelosa e cuidadosa como só ela.

“Pode vir, Kéindê! Olha só quanto inhame, olha quanta criança pra brincar com a gente... olha como os adultos estão felizes... quanta coisa eles vão nos ensinar! Olha os bichos, Kéindê, olha os morcegos brincando com as árvores e com nuvens, olha como eles voam direitinho, sem trombar uns nos outros! Olha os macacos babuínos, que família grande eles têm e como eles cuidam juntos dos filhotes, igualzinho as pessoas! E olha o sol, Kéindê, como ele acende o dia pra gente ver todas as coisas... e olha a sombra boa das árvores carregadinhas de frutas! Olha o rio Oxum, Kéindê, vamos poder nadar todo dia com as outras crianças!”

Taiuô estava mesmo animado! A irmã não resistiu a tanta maravilha... e então... atenção... vamos lá... pronto: Kéindê nasceu também! Viva Kéindê (gritaram os adultos)! Viva Taiuô (responderam as crianças)! E a festa atravessou o dia ensolarado e continuou pela noite estrelada, com muita música, dança e comida.

Taiuô crescia forte e sabido. Ia ser ferreiro, como o pai e o avô, sempre espreitando e experimentando o trabalho dos parentes. Aprendia o ofício de tirar o metal das pedras e transformá-lo em coisas úteis para as pessoas. Kéindê, ainda mais sabida que o irmãozinho (como têm de ser os irmãos mais velhos) era uma beleza cada dia mais bela, uma doçura cada dia mais doce. A pele preta, preta, preta de Kéindê, escura como o azul-violeta do índigo, rebrilhava no sol e com a luz da lua, e as pessoas do vilarejo não paravam de comentar, orgulhosas, a boa estrela de seus gêmeos abençoados.

Um dia apareceu no vilarejo um estranho viajante, falando uma língua diferente de todas que as pessoas daquele lugar já tinham escutado. Ele vinha de um país muito distante, do outro lado do mar, chamado Brasil. O viajante foi recebido com festa (como aquelas pessoas gostavam de festa!) e logo fez amizade com as crianças do vilarejo. Kéindê, que nessa época era respeitada pela criançada como a mais inteligente de todas, deu as boas-vindas ao viajante.

“Seja bem-vindo, ó viajante da língua esquisita. Que você fique aqui conosco pra contar suas histórias!”

Dito e feito. Quando a noite chegava, as crianças sentavam-se ao redor da fogueira para ouvir o viajante contar, naquela língua enrolada (que se chamava “português”), as suas histórias, cada uma mais assombrosa que a outra. Ele contava que no Brasil também tinha florestas enormes e também cheias de macacos que parecem gente, e árvores carregadas de frutas e rios enormes, parecidos com o rio Oxum. Ele contou como os indiozinhos do Brasil se divertem com os macacos e como gostam das frutas e de nadar no rio, assim como as crianças daquele lugar. Às vezes contava coisas tristes, também, essas coisas ruins que acontecem no mundo, de cortar o coração.
Taiuô, que escutava tudo prestando muita atenção (como era difícil entender a língua daquele moço!), os olhinhos arregalados, perguntou: “E no Brasil também tem Taiuô e Kéindê?

O viajante, que também não entendia direito a língua das crianças, retrucou: “Tamiô e Kesmê?” As crianças riram muito, muito, muito do viajante: “Taiuô e Kéindê!”, corrigiram todas as crianças, num grito só. “Tamião e Kosmiê?”, tentou mais uma vez o viajante. As crianças rolavam pelo chão de tanto rir daquele jeito do viajante falar os nomes dos gêmeos. Uma até passou mal e teve que ser atendida pela avó, que teve de dar pra ela um chá de ervas pra dor-de-barriga! Os adultos espiavam só de longe, também achando graça na confusão que o viajante aprontava com as crianças.

“Taiuô e Kéindê”, repetiu, para o viajante, uma menininha chamada Alabá, a menorzinha de todas. “Os gêmeos Taiuô e Kéindê trouxeram boa sorte e alegria para todos nós. As crianças do Brasil não têm gêmeos pra brincar?” O viajante pensou, pensou, e finalmente respondeu: “Sim, Alabá, tem gêmeos no Brasil, mas não com esses nomes bonitos que vocês dão a eles”.

As crianças ficaram muito preocupadas com a resposta do viajante. Como os gêmeos iam trazer sorte e alegria para o povo brasileiro sem o nome apropriado? Por que a gente daquele lugar sabia (e as crianças sabiam melhor ainda) que nada acontece na vida das pessoas sem o nome certo para guiar o caminho. As crianças ficaram tão preocupadas que Kéindê, líder da criançada, resolveu levar o viajante para consultar o Babalorixá, o sábio do vilarejo. Ele tinha mais de 100 anos e conhecia todos os mistérios deste mundo e até dos outros mundos que existem longe da nossa vista.

O Babalorixá escutou a história do viajante (sem entender muito bem), escutou a versão das crianças (agora sim, dá pra entender!) e ficou um tempo pensativo, olhando com o olhar comprido prum insetozinho que volejava em torno da vela acesa.
“Crianças, vocês não precisam ficar preocupadas. E nem você, viajante da língua enrolada. Todo o povo brasileiro, os índios, os caboclos, a gente das matas, do sertão e das montanhas, dos rios e da beira-mar, o povo que vive na roça e até a gente da cidade pode receber a benção dos gêmeos que já nasceram e ainda vão nascer, assim como nós. O que os brasileiros não conseguem fazer, ou por que já esqueceram ou por que ainda vão aprender, é falar a língua que nós falamos”.

E a solução, soprada no ouvido do Babalorixá pelas verdades do outro mundo, foi a seguinte: “Viajante, peça para as crianças fazerem dois bonequinhos bem parecidos, de madeira bem macia, e leve com você para o Brasil. Esses bonequinhos vão carregar o axé (o poder mágico) dos gêmeos Taiuô e Kéindê para a sua gente. Dê a eles nomes brasileiros, que vocês possam entender e falar uns pros outros, e então vocês devem festejar e dançar e comer do jeito que nós fazemos”.

As crianças fizeram então dois bonecos lindos e quase iguaizinhos, de madeira escura pintada e cabelos de palha de milho, e presentearam o viajante. O viajante deu ao bonequinho Taiuô - o que tinha cara de mais novinho e curioso, aquele que vem antes pra xeretar e contar as novidades do mundo - o nome de Damião. E ao bonequinho Kéindê - que tinha a carinha mais séria, mais inteligente, de quem sabe pensar e refletir sobre as coisas -, o nome de Cosme.

Desde aquele dia, velando por todas as crianças do Brasil, vivem nesse grande país os gêmeos Cosme e Damião, trazidos de um vilarejo do outro lado do oceano, no grande continente da África, num tempo em que o mundo era ainda mais bonito que hoje.

VIANNA, Beto. “Taiuô e Kéindê”. In: Costa, José Mauro da (org.). Descobri!. Belo Horizonte: Mazza edições, 2009, ps. 21-29 - Ilustração: Adriana Leão - Projeto Livro de Graça na Praça

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